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Desconstruindo a memória afetiva de Eleanor & Park


Li Eleanor & Park quando tinha 16 anos, em 2014. Estava começando a me aventurar pelo mundo dos romances (Deus abençoe A Culpa é das Estrelas) e me apaixonei logo de cara por essa obra de Rainbow Rowell. Sou gorda, como Eleanor. Tem um personagem coreano, eu já era k-popper e dorameira na época e nunca sequer havia pensado na existência de livros com protagonistas coreanos. Por que não? 

Na inocência de uma adolescente que mal sabia o que era beijar e sem qualquer senso crítico, me derreti lendo essa história de amor. Devorei cada página como se minha vida estivesse nas mãos da autora. Grata por essa obra de arte dos deuses que, aos 22 anos de idade, descobriria não ser bem assim. E que seria muito difícil desconstruir tamanha memória afetiva que possuo dela. 

Nem faz tanto tempo assim, mas acredite, as coisas mudaram. Adolescentes de hoje são muito mais inteligentes e críticos do que eu fui. É impossível usar o Twitter sem se deparar com rico conteúdo informativo (e em formato de thread!) sobre racismo, machismo e sexualidade. Eu não tive esse privilégio. Na minha época a gente só tweetava letra de música e uns trocadilhos meia boca.

Quando li as notícias de que Eleanor & Park seria transformado em filme o meu mundo girou. Toda aquela sensação de euforia que senti ao ler o livro voltou, mesmo sem me lembrar de 99% dos acontecimentos da obra. Resolvi dar uma pesquisada sobre a obra para refrescar a memória, e logo de cara me deparo com comentários sobre como Rainbow Rowell foi extremamente infeliz ao atribuir zilhões de estereótipos racistas a Park. Eu precisava reler este livro. Urgente. E o fiz.

O reli com a mesma urgência que o havia feito oito anos atrás. A história continua boa, para quem gosta de romances teens com um toque nerd e muita problemática familiar, uma baixa probabilidade de final feliz e muito drama adolescente. Mas, meu Deus, que descrições são essas?

Eleanor constantemente se remete a Park como "mestiço idiota", ainda que apenas em seus pensamentos. Também o compara com Ming, o Impiedoso, personagem chinês interpretado por ator branco. Completamente errado.


A própria personagem relembra que um amigo, Paul, no passado a tentou ensinar que "japa" só se usa para falar de comida japonesa e, para se referir a pessoas, o termo correto seria "oriental" — que também não é adequado, assista ao vídeo de Leo Hwan, acima, para entender melhor.

E como Eleanor reage à aula? "Tanto faz, xing ling"

"Eleanor não compreendia o que fazia um oriental nas Colinas, afinal. Todo mundo que morava ali era superbranco"Para piorar, no parágrafo seguinte a autora ainda tenta justificar que Eleanor não é racista por evitar a "palavra com P", adaptação em português para a "N word" usada pejorativamente para descrever negros. 

Rowell também descreve o personagem Park como "metade menina" por sua falta de interesse em futebol e por ele desejar ter luzes no cabelo quando era mais novo. Sério que isso define o gênero de alguém? Caramba, Rowell.

Park é filho de mãe coreana (descrita por Eleanor como alguém da Cidade da Porcelana Chinesamesmo tendo plena ciência de que a mulher é da Coreia) com pai ocidental, de ascendência irlandesa. O pai constantemente parece se revoltar contra Park por ele ser o que descreve como "afeminado", por ter herdado o biotipo da mãe. E o próprio tem um visão muito machista e estereotipada de sua própria origem.


Seu irmão herdou os traços do pai, e Park apaga sua ascendência coreana tratando o irmão como 100% branco dado unicamente a sua aparência, qual sente inveja. Ainda, em outro momento do livro, o rapaz tenta convencer Eleanor de que não há nenhum "oriental gostoso" e que, em suas próprias palavras, "tudo que uma oriental tem de exótico faz o cara oriental parecer mulher". Ele odeia sua ascendência.

E nem é só o racismo que incomoda nessa obra. As descrições de Eleanor sob a visão de Park são igualmente absurdas, uma troca de ofensas constantes disfarçada de romance. Eleanor é gorda e se veste de forma despreocupada, fazendo Park tecer comentários sobre como ela "estava vestida feito uma árvore de natal" ou, que "se ela não queria que as pessoas olhassem [...] não devia usar iscas de pesca enfiadas no cabelo", justificando o bullying que a garota sofria.

Ou, ainda, passagens extremamente nada saudáveis que poderiam muito bem nunca ter existido se houvesse o mínimo de noção:

"Será que dava para estuprar a mão de alguém?", pensa Park após tocar a mão de Eleanor. Nojento.

"Arrumada como uma prostituta da Babilônia", descrição utilizada por Eleanor para falar de sua própria irmã, Maisie, de apenas nove anos, após ter passado maquiagem.

"Parece um palhaço mendigo triste", descrição de Park sobre Eleanor, dita em voz alta à própria, e que a mesma gostou tanto que sorriu em seguida. Quanto romantismo!

Não percebi nada disso quando li o livro pela primeira vez. Excesso de inocência, falta de conhecimento, de não estar inserida em debates como hoje. Passei anos amando Eleanor & Park sem ter me tocado de tais horrores que não faziam parte do meu repertório na época, mas que ao reler só me causa repulsa.


Deus, como pode um livro que me acompanhou no início da minha jornada literária, que me fez aprender a gostar de ler, ser algo tão grosseiro? Como eu era tão inocente a ponto de não tê-lo percebido? Como Rainbow Rowell pôde estragar a memória tão linda que eu tinha dessa obra?

No auge do meu positivismo gosto de pensar que, tal como eu mudei e os anos se passaram — oito ao todo desde a primeira publicação de Eleanor & Park —, talvez a autora também tenha mudado e se arrependido do que escreveu na época. Somos seres em constante aprendizado e evolução. Mas será que não tinha um amigo na época pra avisar que é errado fazer piadinha com estupro? Ou de comparar uma coreana com porcelana chinesa? Misericórdia!

Não leva mais que dois cliques no Google para achar bons e ótimos textos de coreanos-americanos, ainda que em inglês, que ficaram horrorizados com essa tentativa de representatividade que diminui toda a identidade coreana. Tradução de um pequeno trecho de uma das mais elucidantes escritas sobre o racismo presente em Eleanor & Park
"A razão pela qual você (e muitas outras pessoas brancas) não vê o racismo em Eleanor e Park é porque é do tipo sorrateiro. O tipo que você não pode ver ou reconhecer, a menos que tenha passado por isso. Outra razão pela qual você pode não reconhecer é porque a própria protagonista, Eleanor, é um dos personagens mais racistas do livro. E digo isso porque os outros (Steve, geralmente) são racistas flagrantes, enquanto Eleanor não. O racismo de Steve é ​​bastante óbvio no livro. Ele basicamente diz que todos os asiáticos são iguais, zomba da etnia de Park, etc., etc. Pessoas como ele são muito fáceis de identificar. Eleanor, por outro lado, é do tipo que eu gosto de chamar de "bom amigo branco". Ela é diferente! Ela não acha que a palavra com N, não insulta as pessoas, não acredita em estereótipos. Isso significa que ela não é racista, certo?" — Feminism and Media

Errado. "As vezes ela se perguntava se o formato dos olhos dele afetava a forma como ele via as coisas. Essa devia ser a ideia mais racista de todos os tempos", pensa Eleanor. Parabéns, Rowell, nisso você acertou: essa ideia é bem racista mesmo. E nem venha com desculpas de que o livro se passa nos anos 80. 

"Então, por que Rowell escolheu escrever um protagonista coreano? A própria Rowell admitiu que, na primeira vez em que recebeu essa pergunta, ela encolheu os ombros: "Eu escrevo [personagens] da maneira que os vejo, e geralmente nunca volto a pensar sobre o porquê". Ela admite que pouco pensamento consciente foi feito inicialmente quanto à identidade de Park, bem como a todas as implicações potenciais associadas à sua escrita. Mais tarde, ela abordou a importância da diversidade na literatura depois de ser pressionada pelos fãs a abordá-la. Se os autores não tiverem suas próprias experiências nas quais basear seus textos, eles deverão fazer uma pesquisa minuciosa para garantir que sua representação fictícia seja respeitosa e genuína. Esse tipo de pesquisa meticulosa e empática exige tempo e esforço. Ao ler Eleanor & Park, ficou cada vez mais claro para mim que Rowell fazia muito pouca pesquisa, se é que havia alguma, sobre como é ser um americano do leste asiático. Ou, se o fez, optou por não incluí-lo." — Nu Political Review

A tradução utilizada nos trechos resgatados são de Caio Pereira, da publicação pela Editora Novo Século.
Eleanor & Park (e toda a obra de Rainbow Rowell) volta as livrarias em breve com nova casa, pela Editora Seguinte, que já serviu livros incríveis com verdadeira representatividade coreana, tal em Frank e o Amor e Um Lugar Só Nosso.

O Elfo Livre teve acesso à nova edição, desta vez com tradução realizada por Lígia Azevedo. O livro não traz nenhuma nota de rodapé sequer sobre a polêmica, estilo aqueles avisos do Disney+ para avisar que filmes como Dumbo e A Dama e o Vagabundo possuem cenas racistas, devido ao contexto histórico do lançamento ou coisa do tipo, e que isso não representa os pensamentos atuais dos envolvidos. Nada.


Ainda não terminei de ler a nova edição — uma nova publicação será feita para comparar as traduções, caso haja muita discrepância —, mas bastou um olhar rápido pelas páginas para perceber que houve uma tentativa de amenização: "mestiço idiota" foi alterado para "o tonto do menino asiático", Eleanor não é mais chamada de "ruivona". Ficou melhor para quem ler essa versão, mas ainda é difícil saber que a poeira continua lá embaixo do tapete.

O filme que está a caminho, entretanto, ainda pode salvar a história. Apesar dos grandes pesares, o livro tem um plano de fundo muito interessante ao abordar os dramas de uma mãe submissa, um padastro abusivo, expectativas familiares na juventude, bullying na escola, o medo em expor seus problemas e diversos outros assuntos que são sim bacanas de serem lidos. Até a relação dos protagonistas seria interessante se tratada de outra forma. 

O cinema (ou o streaming) pode se retratar dos erros do livro e trazer uma versão de Eleanor & Park não-racista. Seria incrível poder revisitar a história deste casal com suas problemáticas melhor apresentadas. Mas ainda é difícil considerando que Rainbow Rowell é a roteirista do projeto: ela pode tanto utilizar essa possibilidade para se redimir ou se afundar de vez. 

Em 2012 sua obra teve os aspectos racistas relevados,  hoje, apesar de pouco tempo ter se passado, os debates raciais e de representatividade asiática estão muito mais fortes, e se o filme manter este mesmo tom as coisas não ficarão nada bem. 

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5 Comentários

  1. Oi, Karol! Conheci seu blog recentemente e já estou curtindo ler diversos textos, e essa sua análise sobre o Eleanor e Park foi importante por ter aberto muito meus olhos. Eu tenho esse livro esperando para ser lido há uns dois anos, mas sinceramente, após descobrir a respeito da quantidade de discursos racistas e descrições absurdas que você destacou, perdi completamente a vontade de sequer tê-lo em minha estante ahahah. É uma pena ver um livro com esse tipo de conteúdo - uma história direcionada à jovens que deveria trazer exemplos inspiradores e representações dignas, fazendo tudo ao contrário. Realmente desanimei total e sinto que não devo nem doá-lo a alguém! Mas como você mesma disse: é bom ver o quanto nós mudamos com o tempo ao perceber coisas muito erradas nessas narrativas que não notávamos quando mais jovens. E também espero que a autora tenha evoluído após esses anos, que se preste a criar personagens não-brancos com mais cuidado e não reproduza mais tamanha ignorância em suas histórias.


    Abraços!
    www.oblogtrivia.blogspot.com/

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    1. Oi, Giovanna!

      Quando eu era mais nova sequer tinha passado pela minha cabeça esse monte de coisa errada, e revisitá-lo com outra mentalidade foi um processo bem doloroso, mas necessário. Não sei se o recomendaria para alguém hoje, mas ainda acredito que ainda não seja de tudo perdido, já que pode ajudar a despertar esse olhar crítico — eu o usaria em sala de aula, por exemplo, para discutir questões raciais/gordofóbicas e desmistificar que tudo o que é publicado é lindo e perfeito.

      Mas como alguém que passou anos indicando essa leitura para os outros... que decepção, menina do céu!

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  2. Olá! Me deparei com um vídeo no Youtube falando sobre Eleanor e Park e trazia essa mesma temática dos problemas do livro (que eu li em 2015 ou antes) e que eu não notei na época. Fiquei tão animada com a notícia do filme, mas agora estou mais atenta e quero reler o livro para notar tudo o que não notei há alguns anos atrás.
    Eu acabei comprando alguns outros livros dela, curti bastante, não tenho certeza se teve problemas semelhantes pois só lembro a história por cima, mas será que encontro algo aqui no site de vocês?

    Obrigada.

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    1. Oi! Perdão pela resposta tardia.

      Eleanor & Park é o único livro que li da autora até o momento, então não sei se esses problemas também estão presentes nas outras obras dela.

      Sinto muito por não poder ajudar nisto, mas agradeço pelo seu comentário.

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  3. Oi Karol tudo bem? Acabei de ler sua postagem depois de ver um assunto nos trendings do twitter falando sobre livros que deveriam virar adaptação, e este estava lá. Devo confessar que senti a mesma coisa que você: eu li o livro anos atrás em meados de 2013 e quando reli agora me senti meio estúpida e triste com algumas coisas, ainda mais por estar lendo o livro pra minha namorada que é gorda e pensei poxa talvez seja legal pela Eleanor ser gorda também mas BAM que bola fora. Porém o que quis vir comentar é que: se você leu John Green então deve ter lido looking for alaska e sabe dos problemas do livro não é? existe muita sexualização na personagem da Alaska e os pensamentos do Pudge sobre ela soam machistas em muitos momentos. a Hulu produziu uma mini série e devo dizer: corrigiu tudo. Deram dignidade a Alaska que faltou no livro! Na série, até uma visão pela cabeça dela nós temos. John Green que Deus o abençoe falou sobre a necessidade da correção e auxiliou em tudo de modo que tirasse a essência da história. Então temos uma esperança para Eleanor & Park. É isso, um abraço!

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